Alexandre V. Palaoro Escreve. Apaga. Escreve, escreve. Apaga, apaga. A página reflete um branco feroz, irritando os olhos. "Quem sabe se eu colocar algo na tela ajuda". Título escrito. Nada. Adiciona autores, instituições. Nada, nada. Troca fontes, deixa as sessões enumeradas nas normas da revista. A única coisa que essa estratégia fez foi ressaltar o quanto você não consegue escrever. Aquele calafrio começa a subir, o estômago começa a revirar, o tempo parece passar mais devagar. "Por queeee não consigo escrever?!". Começa a busca por dicas para tentar escrever, para fazer algo sair. No fim, o sentimento de fracasso bate na porta: “Desisto”. Fecha o computador. Na volta para casa, uma neblina densa, pesada, ofusca a capacidade de enxergar algo de bom nisso tudo. Alguns chamam isso de "bloqueio de escrita", mas eu, no auge do meu treinamento médico de 8 temporadas de House, gostaria de sugerir que isso seja só uma das formas da frustração se manifestar. A "entidade da escrita" se manifesta de maneira diferente do que as pessoas acreditam, e isso acaba gerando inação – e com a inação, vem a frustação. Portanto, precisamos conversar sobre escrita (de novo). Mas, dessa vez, sobre a ansiedade em torno do processo de escrever. Como falei no post anterior, acreditamos que a escrita está vinculada como um “dom”, algo que requer inspiração – e não com o que realmente é - uma habilidade que exige treino e trabalho duro. A típica frase proferida por acadêmicos em qualquer nível (inclusive por este que vos fala) é um exemplo crasso dessa relação entre escrita e inspiração: “Ah, tem dias que eu não consigo escrever porque não estou inspirado. Escrevo um parágrafo com muito custo, só para no dia seguinte, no qual estou inspirado, apagar tudo e reescrever de novo. Agora fico esperando estar nesses dias inspirados para escrever.” Falamos isso porque associamos a escrita com um indivíduo super-criativo, inteligente, que pensa fora da caixinha (o que quer que isso seja), que senta e as palavras jorram de seus dedos para o papel (J. R. R. Tolkien sempre me vem a mente). Além de não haver esforço, tudo sai perfeito. Esse indivíduo super-criativo é um ser iluminado que está sempre inspirado. Quando não adequamos a nossa escrita a essa imagem ideal – construída por nós mesmos - nos sentimos mal. Pensamos que não levamos jeito para a coisa, nos frustramos. “Melhor deixar para tal coleguinha, ele parece levar jeito para escrita.” O que não entendemos é que esse ser ideal é raro. A maioria dos escritores passa mais tempo em outra atividade igualmente importante: a revisão de seus textos. Voltando ao exemplo crasso: “Escrevo um parágrafo com muito custo, só para no dia seguinte, no qual estou inspirado, apagar tudo e reescrever de novo.” Você decidiu que estava inspirado e escreveu, ou percebeu que estava inspirado porque conseguiu escrever? Perceba que no dia seguinte você já tinha algo escrito, você só melhorou aquilo que já estava escrito (por mais que tenha reescrito completamente). Então, tudo que você chama de ‘inspiração’ pode não ser nada mais do que revisão do texto. E isso não é ruim. Muito pelo contrário. Revisão é um passo fundamental da boa escrita! A escrita exige muito esforço por conta disso – ela é um processo contínuo e longo de revisão. Você escreve, revisa, escreve, revisa, revisa, revisa, revisa, até que depois de 40 versões tem coragem de mandar para alguém. Você não é um mau escritor porque precisa revisar. É simplesmente um processo natural de todo texto. Quando você revisa, você refina a lógica do argumento, conectando as ideias melhor. Mesmo o ‘ser ideal da escrita’ precisa revisar o texto. É justamente por isso que escrever demanda muito tempo! Você precisa de muitas versões para conseguir ter algo aceitável – e isso não é ruim! Além de ser perfeitamente normal e saudável, é muito mais do que um simples processo: É o teu estilo de escrita. Gosto de pensar (ênfase no pensar) que existem dois tipos de escritores: O ser teoricamente ideal, que escreve tudo perfeito na primeira vez; e o ser que precisa escrever e revisar inúmeras vezes. Ambos estão igualmente corretos e conseguem produzir textos excelentes – são só formas diferentes de um mesmo contínuo de como escrevemos. Só porque você precisa revisar mais, não significa que você é pior (geralmente é até o contrário, revisar sempre melhora o texto). Além disso, as poucas pessoas que conheço que possuem um perfil próximo do “ser teoricamente ideal” passam tanto tempo pensando quanto eu passo escrevendo e revisando. Demorei anos para perceber que a atividade de pensar consome o mesmo tempo que revisar, e principalmente para perceber que a qualidade dos textos não diferia muito. Meu ponto é: prestem atenção no seu perfil de escritor. Você se encaixa mais no indivíduo que pensa mais, ou no que revisa mais? Sempre lembrando que nenhum é melhor que o outro, são apenas formas distintas de encarar o processo de escrita. Aceitando o tipo de escritor que você é, a sua relação com escrever certamente melhorará. Você não sofrerá tanto com expectativas frustradas e com o processo de escrita. Encarar a escrita como um longo processo de revisão tornará todo o processo muito menos torturante. O processo continuará sendo longo e árduo, mas pelo você estará tranquilo que “faz parte”. Para quem sofre ou já sofreu com isso, recomendo fortemente a palestra do Robson Cruz: https://www.youtube.com/watch?v=00GsL-L_lik. Ela tem uma hora e 17 minutos de duração, mas vale cada segundo. Também sugiro dar uma olhada no trabalho dele. A pesquisa dele está inserida nesse tema, então vale a pena tirar alguns momentos do dia para aprender um pouco mais sobre si. PS: esse texto foi revisado oito vezes (sem contar revisões externas), e a versão atual não está nem perto de lembrar a primeira versão.
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Afinal, por que escrever ciência é tão difícil?Alexandre V. Palaoro
O despertador toca. Aquele som agudo, alto, penetra fundo na sua mente e o desperta. Um novo dia começou, e de uma forma nada agradável. Você levanta, sonolento, pensando: “Por que eu tenho que levantar mesmo?”. Toma café da manhã e vai para o laboratório. Chegando lá, liga o computador, faz café, senta na frente do computador, abre o Word. Dá um pequeno, mas demorado, gole de café. Olha para a tela e pensa: “Agora a mágica vai começar!”. Todos aqueles longos meses de experimentos, sofrimentos, leituras noturnas de artigos (porque era o tempo que sobrava), todos eles preparando você para esse momento único. “Vou escrever minha tese agora”. Dois minutos passam; nada, nenhuma ideia. Após mais cinco minutos (que parecem uma hora), nada acontece. O piscar da linha do Word parece intimidante. Todas as palavras fugiram dos “seus dedos” — e você achando que tinha tudo delineado na sua cabeça, né? A partir daí é só ladeira abaixo. Dúvidas começam a surgir, você não sabe por onde começar. O desespero toma conta. Você não consegue escrever aquilo que vinha há anos planejando. Achou essa descrição similar a alguma coisa que aconteceu contigo? Ou com alguém que você conhece? “Meu deus, como ele sabe?” Será que eu deveria virar vidente? Apesar de eu gostar de acreditar que sim (#AlexandreVidente), isso é apenas um quadro muito comum entre os cientistas, independentemente da fase da jornada do cientista em que eles se encontram (A Jornada do Cientista). Todos cometemos dois erros fundamentais que destroem qualquer tentativa de escrita. O primeiro é pensar que é só “sentar e escrever”, que escrita é algo de “inspiração”. O segundo é pensar que nossa primeira versão vai ser o melhor pedaço de ciência já escrito, ever. Que o mundo vai ser lindo e todos vão amar o que você escreve logo de cara. Além de estar longe da verdade, essa frustação é contraprodutiva. Não produzimos com a qualidade que queremos e vivemos nessa pressão para escrever. Sempre na beira da ansiedade e podendo causar depressão. O que podemos fazer contra isso? O ponto que quero mostrar nesse texto é que precisamos praticar mais. Pode parecer estranho pensar em praticar escrita, mas não é. Em qualquer atividade que fazemos, há algum tipo de treino relacionado. Esportes requerem que você não só treine os movimentos, mas também seu corpo. Instrumentos musicais, nem se fala; só olhar o filme Whiplash – Em Busca da Perfeição. Cozinheiros passam anos treinando até abrir seus restaurantes (há documentários que dizem que a pessoa só se torna chef depois dos 45 anos – Chef’s Table é um desses exemplos). Até seus experimentos ficam melhores com mais prática: no início tudo é difícil, você pensa muito no que faz e os movimentos são desengonçados. No final, todas as tarefas parecem automáticas – você colocou os tips de 0,1 ml próximos das pipetas que vai utilizar para isso. Os tips de 0,05 ml, no entanto, estão mais próximos do PCR, pois são os últimos a serem utilizados. Tudo virou uma linha de montagem. Nessa altura dos experimentos, você não quer nem mais ajuda de outras pessoas porque “atrapalham seu fluxo de trabalho”. Então, por que acreditamos que escrever não precisa de treino? É uma atividade como qualquer outra. Todos os autores de sucesso escreveram e continuam escrevendo — e muito — todos os dias. Faz parte do ofício deles. Por que não fazemos o mesmo? “Mas eu preciso de algo para escrever Alexandre! Não é assim, sair escrevendo qualquer coisa! Eu me sinto culpado quando escrevo coisas que não são sobre a minha tese!”. Aqui cabem duas provocações. Primeiro, por que escrever sobre qualquer coisa é ruim? Segundo, será que esse sentimento de culpa, além de paralisante, não vem da forma como você encara a escrita? Ou seja, será que essa culpa não vem do “só escrevo porque preciso”? E se você tentar mudar a relação com a escrita, sua relação com o teclado? Fixe um horário na sua agenda, de meia hora que seja, para você só escrever, sobre absolutamente qualquer coisa. “Hoje eu vi uma borboleta com uma asa “defeituosa”. A parte mais basal (que eu tenho certeza que tem um nome, mas eu não sei) parecia “comida”. Isso deve influenciar muito na habilidade de voo dela. Como será que influencia a aerodinâmica dela? É bem provável que influencie até a sobrevivência, mas nunca li nada sobre. Estranho. Nota pessoal: eu realmente gosto de usar aspas” – Alexandre Palaoro, dia 21 de outubro de 2014 (primeiro ano do doutorado). Como vocês podem perceber, essa passagem de uma sessão de escrita se refere a algo do meu dia-a-dia. Na época não tinha nada a ver com minha tese. Só uns dois anos depois é que percebi que gostava de morfologia funcional e isso acabou sendo agregado às minhas pesquisas. O objetivo desse treino é simples: modificar sua relação com o teclado e com a tela branca. Quanto mais confortável você estiver ao escrever, melhor. Da próxima vez, encarar a tela branca não será tão intimidante. Em suma, a mensagem para vocês levarem para casa é: escrevam mais! Qualquer coisa serve! Façam um diário se necessário. O importante é transformar a escrita em hábito. O site http://750words.com usa essa ideia para ajudar as pessoas (mais sobre isso em outro post). O segundo é: descubram como vocês funcionam e adequem sua rotina de escrita a vocês. E lembrem-se: escrever perfeitamente logo de cara não é necessariamente o melhor processo; muitas vezes é mais produtivo você escrever muito e depois corrigir do que pensar muito e escrever pouco. |
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September 2019
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